Sue é uma idealização. E toda idealização é um Frankenstein que pode te matar. O filme “A Substância” foi escrito e dirigido por Coralie Fargeat. O livro “Frankenstein” foi escrito por Mary Shelley. Mulheres. Assim como a teoria psicanalítica das relações objetais, desenvolvida por Melanie Klein. Ó abre alas que queremos passar! E, sim, a primeira marchinha de Carnaval do Brasil foi criada por uma mulher: Chiquinha Gonzaga.
“A Substância” entrou para minha lista pessoal de melhores filmes. Descobri que ele faz parte da categoria coentro: ou amam ou odeiam. Foi um filme que reverberou em meus pensamentos por muitos dias e, em uma dessas reflexões, fiz uma relação com a teoria da Melanie Klein. Na verdade, Klein já tinha aparecido na minha mente em uma das cenas finais, em que um seio é expelido. Saí do cinema com a dúvida: “Aquele era o seio bom ou o seio mau?”. Minhas reflexões posteriores me ajudaram a chegar a uma possível conclusão.
Sue, uma das personagens do filme, “nasceu” a partir de um corte bem semelhante à cesárea, só que pela coluna de Elisabeth, interpretada pela impecável Demi Moore. Fazendo uma relação com Melanie Klein, Sue é a parte idealizada de Elisabeth, a parte que ela não conseguia ver. Elisabeth projeta em Sue seus objetos bons internalizados. No filme, eles são representados pela beleza externa. Esses objetos bons foram projetados em Sue, mas eles não são Sue, são partes de Elisabeth.
Quando Elisabeth vê Sue com partes dela, mas agindo de acordo com quem Sue realmente é, causa o choque da idealização com a realidade. Elisabeth enxerga Sue fazendo coisas que ela não faria ou que jamais admitiria publicamente que faz. Essas ações de Sue repreendidas por Elisabeth podem ser, também, os objetos maus de Elisabeth que foram expelidos junto com seus objetos bons. Toda essa mistura de objetos bons e maus de Elisabeth transforma Sue em um monstro, o monstro da idealização.
Sabemos que monstros não existem. Sue, da forma que Elisabeth criou, também não existe.
A idealização inventada por Elisabeth é tão forte que ela não admite conviver com a realidade de Sue e decide eliminá-la. Porém, a realidade de Sue está coberta com a névoa da idealização. E, quando Sue está prestes a deixar de existir, Elisabeth interrompe o processo, com a justificativa de que Sue é sua melhor versão.
Sue, ao descobrir a tentativa de Elisabeth, vira o jogo e tenta matá-la. Mas se Sue é a idealização de Elisabeth, é Elisabeth que se mata aos poucos ao manter viva sua idealização.
No filme, isso é retratado de forma muito concreta, por meio da destruição física, mas trazendo para fora das telas, quando percebemos o outro como ele realmente é, sem os nossos objetos bons, ele também vai deixando de existir. A idealização vai desaparecendo e dá lugar à realidade, sem a separação de objetos bons e maus. O outro se torna o objeto total, aquele seio único que é expelido no palco, em uma das cenas finais.
Muitas vezes, a consequência de idealizar o outro é torná-lo nosso sub, alguém que vai nos substituir por não termos a coragem de sermos quem somos.
Cada pessoa com quem eu conversei sobre “A Substância” teve uma percepção diferente sobre o debate que o filme propõe, desde o clássico tema sobre beleza, passando por etarismo e maternidade. E tem dois pontos que permeiam todas as percepções: a culpa e o julgamento do feminino. Aquela imagem final da Calçada da Fama me lembrou Medusa, depois de ter sido transformada em Górgona. Elisabeth, assim, como Medusa, foi culpada e punida apenas por ser quem era. Talvez, um dos mecanismos de defesa que as mulheres encontraram para não serem punidas, e que une A Substância, Frankenstein e Melanie Klein seja a idealização: já que não podemos viver como quem somos, vamos idealizar, projetando nossos objetos bons na juventude, no relacionamento amoroso, na beleza, nos filhos, na amizade, nos estudos ou no trabalho.
“A Substância” não traz respostas ou soluções. A arte, assim como a psicanálise, nos convida a nos conectar com a gente. É menos sobre tentar entender o outro e mais sobre olhar pra dentro e nos permitir sentir. Vamos abrir alas para nossos desejos e darmos passagem para a coragem de sermos quem somos.